“Amigos, não consultem os relógios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.”
Mario Quintana
Parafraseando Quintana, o poeta das coisas simples, bastaria um gole de vinho para nos dar a eternidade inteira. Cada gole guarda um pedaço de tempo, que traz em si a história de uma safra, de um ano.
O tempo tem sido um dos maiores temas da religião, filosofia e ciência, mas defini-lo de uma forma incontroversa até hoje foi impossível. A visão mais encantadora do que é ou poderia ser o tempo me foi dada não pela religião, filosofia ou ciência, mas pela arte literária, no livro “Sonhos de Einstein” de Alan Lightman (Companhia das Letras, 1998). Em cada capítulo desta obra o tempo passa (ou não passa) de maneira diferente, nos oferecendo uma rica e ampla visão sobre um dos temas que mais angustia o ser humano: a passagem do tempo.
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Por acaso escrevo este texto exatamente no dia de meu aniversário, momento em que a passagem do tempo se evidencia. Olho uma fotografia antiga, onde eu era mais jovem. Ao invés de sentir que o tempo passou para mim, que sou mais velho agora, tenho a sensação inversa: eu sempre serei o “eu do presente”, a foto é que envelheceu, como em “O retrato de Dorian Grey”.
Minha sensação é apoiada por muitos filósofos. Para McTaggart o tempo simplesmente não existe, o que existe é uma ilusão do tempo. Para Bergson o tempo é um “sentimento interior de duração”, não uma propriedade real das coisas, mas uma relação do sujeito com o mundo. O tempo é subjetivo, qualitativo, feito de momentos heterogêneos, de velocidades diferentes.
Muitas religiões representam o tempo de forma circular, como um ciclo em que cada coisa retorna ao que era para então recomeçar (como o ciclo da vinha - que morre no inverno para renascer na primavera). Este caráter circular do tempo anula o peso do passado (já que teremos outra chance de rever nossos erros) e diminui a ansiedade de um futuro incerto, mas por outro lado restringe a liberdade do homem de construir seu futuro.
O tempo do ser humano e o tempo do vinho
O ser humano contemporâneo é “múltiplo”. Faz muitas coisas ao mesmo tempo, vive vários papéis, é um microcosmo de muitas vidas, cada uma seguindo seu próprio tempo, como “cronogramas” dos diversos projetos paralelos de sua vida. Tal realidade se assemelha a um conjunto de garrafas em uma adega, cada uma vivendo seu próprio tempo, em seu próprio ritmo, em sua própria curva de evolução. Um Beaujolais de 2008 poderá estar já de bengalas ao completar seu primeiro aniversário. Enquanto isso um Porto Vintage 2000, oito anos mais velho, está apenas engatinhado, começando sua longa vida. Em nossa adega cada garrafa está a nossa disposição, a qualquer momento podemos provar um 2005 ou um 1990, como se abríssemos cápsulas do tempo, para vivenciar o gosto de um ano e um local.
Cronologia
Outra analogia interessante entre o “tempo do homem X tempo do vinho” é a noção de cronologia. Os antigos gregos tinham duas divindades para o tempo. Kronos, representado por um ancião barbudo alado, era o símbolo do tempo cronológico, ou sequencial. Kairos, jovem belo, retratava o tempo certo, o momento oportuno. O tempo hoje é simbolizado por instrumentos para medi-lo como a ampulheta e o relógio. Somos regidos por Kronos e esquecemos um pouco Kairos. A teologia usa o mesmo conceito, chamando Kronos de “tempo dos homens” e Kairos de “tempo de Deus”.
O vinho, a cada safra, cada colheita, nos mostra Kairos, o tempo certo de colher as uvas, o momento propício. Se colhidas antes as uva não estarão em seu estado ideal de maturação, se colhidas depois podem estar estragadas, sofrer alguma intempérie, praga ou chuva. O sucesso ou fracasso de um ano de trabalho é regido por Kairos, na escolha do momento ideal da vindima.
Safra – a data de nascimento do vinho
Porque, ao escolhermos um vinho, é tão importante observar sua safra? Por que será que uma garrafa do ícone bordalês Château Latour 1990 custa bem mais que uma garrafa do mesmo Château Latour do ano seguinte, 1991? E não apenas custa mais, mas enquanto o Château Latour 1990 está ainda jovem, vendendo saúde e prometendo viver por ainda muitos anos na garrafa, o de 1991, mesmo sendo um ano mais recente, está mais envelhecido, podendo dar sinais de decadência. A resposta está na qualidade da safra. Para o vinho, assim como para o homem, tempo não é apenas uma medida do relógio, mas qualitativo.
O que determina a qualidade de uma safra?
A qualidade de um vinho é fruto da qualidade da matéria prima (as uvas) , do trabalho do homem, das técnicas por ele empregadas na preparação desta matéria prima (viticultura) e da transformação das uvas em vinho (enologia).
A qualidade do trabalho humano e da tecnologia tendem a se aprimorar paulatinamente ao longo das safras. O que realmente oscila são os fatores naturais, que influenciam diretamente a qualidade da matéria prima.
Quanto falamos em terroir falamos no ambiente em que as uvas crescem, um conjunto formado por uma série de fatores, como a composição e drenagem do solo e do subsolo, relevo, inclinação do terreno, clima geral da região, microclima, vegetação circundante, incidência de sol (ângulo da insolação e número de horas de sol ao ano e sua distribuição ao longo do ano), regime pluviométrico (quantidade de chuvas e sua distribuição ao longo do ano), etc.
De ano para ano alguns destes fatores podem variar muito. Chuvas demais ou de menos nos momentos errados, sol demais ou de menos nos momentos mais ou menos propícios, pragas ou granizo. Fenômenos do tipo El Niño podem também ocorrer. O vinho é muito sensível e reflete todas estas variações. Isso faz com que uma safra fique muito melhor (e custe muito mais) do que outra.
Como saber se uma safra foi boa ou ruim? O ideal é consultar uma tabela de safras, elaborada por especialistas que provaram muitos vinhos de uma mesma região em uma mesma safra para avaliar a qualidade geral daquele ano. No mundo do vinho, como sempre, existem muitas exceções. Um bom produtor pode conseguir produzir vinhos satisfatórios em anos ruins e um produtor negligente, mesmo em anos bons, talvez faça vinhos sem qualidade.
Quanto mais velho melhor?
Para começar, o que é “melhorar”? Todos os vinhos mudam ao longo de sua vida dentro da garrafa. Podemos definir este “melhorar” como sendo o caso em que estas mudanças são benéficas às características organolépticas (gosto, aromas) do vinho. Isso, naturalmente, depende também do gosto pessoal de quem está bebendo. Ingleses notoriamente preferem os grandes vinhos de Bordeaux no auge, o que pode levar mais de 20 anos, enquanto muitos franceses cometem infanticídio abrindo-os muito antes.
O “quanto mais velho melhor” é um mito. Todo vinho cumpre um ciclo, como um ser humano. O vinho nasce, tem muitas vezes uma educação em barris de carvalho, evolui na garrafa até chegar a seu auge, mantém esta maturidade por algum tempo e depois decai, até ficar decrépito. O grande auto-engano da humanidade é viver como se fôssemos imortais. Como os humanos, todo vinho fenece um dia. É verdade que alguns, os fortificados, por exemplo, são virtualmente imortais. A expectativa de vida do vinho é, contudo, variável. Vai de poucos meses num Beaujolais Nouveau, a até um século num Porto Vintage. Alguns fortificados da ilha da Madeira alcançam com saúde os 200 anos de idade. O que então faz essa diferença e como identificá-la?
O que é um vinho de guarda? Quais os fatores de longevidade de um vinho?
Vinhos de guarda são os que se prestam ao longo envelhecimento em garrafa. Quando falamos em longo envelhecimento falamos em mais de dez anos. Na realidade são minoria os vinhos que melhoram com o longo envelhecimento.
Chamamos a fase da vida do vinho engarrafado de “envelhecimento”. Ele sofre uma redução. Os tintos perdem cor e ganham complexidade e sedimentos. Há também perda de taninos e acidez. Os ácidos e álcoois interagem com o oxigênio e formam aldeídos e ésteres. O brancos escurecem, tendendo ao dourado. Aromas frescos se transformam em aromas como mel e frutas como avelãs, por exemplo. Se o vinho for de guarda tende a se harmonizar e ganhar complexidade com os anos.
Os fatores que conservam os vinhos são o teor alcoólico (o que explica a grande longevidade dos fortificados), os taninos e antocianos (o que explica por que os brancos, que não os têm, são mais frágeis), a acidez (o que explica alguns brancos deterem maior durabilidade) e a doçura (o que explica vinhos doces serem notoriamente mais resistentes). Vinhos com quantidades desses fatores são mais longevos. É importante ressaltar que dentre estes fatores a acidez natural é o fator mais importante para o envelhecimento. A falta de acidez natural crônica de muitos dos “modernos” vinhos do novo mundo é a principal explicação para a típica vida curta destes caldos.
Um vinho com grande potencial de envelhecimento (muito tanino, boa acidez) quando jovem pode ser áspero, quase desagradável. Precisa de tempo para que o tanino evolua e se perca de maneira benéfica, harmonizando-se com os outros fatores. Um decrépito é aquele que já perdeu totalmente suas características, mas não necessariamente avinagrou ainda.
Para a maioria dos vinhos o auge é: agora! 90% deles não melhoram depois de postos à venda. Hoje, eles são cada vez mais produzidos para serem (vendidos e) bebidos jovens. Para os poucos que melhoram na garrafa, a curva evolutiva varia de vinho para vinho, de safra para safra. Gurus da crítica tentam adivinhar e orientam sobre quando um vinho de uma determinada safra estará pronto ou no auge ou até quando deve ser tomado. O veredicto final sempre será na abertura da garrafa.
Menu do tempo
Podemos olhar para uma carta de vinhos em um restaurante como quem vê um “menu do tempo”. Como H. G. Wells podemos viajar em uma máquina do tempo apenas manejando um saca-rolhas. Ao longo de um mesmo jantar é possível ir para frente e para trás no tempo. Aperitivo no presente, com um Rosé de Provence 2009. Voltamos ao passado na entrada, com um Champagne Millésime 198. Continuamos passeando no primeiro prato com um branco 2004. Depois o principal com um tinto 1990, para finalmente encerrar lá atrás, no ano de nosso nascimento, com um Porto Colheita 1965.
A magia da velha garrafa
Ao visitar um produtor de Barolo há alguns anos ele me falou de uma tradição de sua família: a cada safra emparedar algumas garrafas, para que as gerações futuras recebam como presente. Provamos lá, em 2007, um Barolo 1957, da reserva da família. Eu pessoalmente sempre me fascino ao abrir uma garrafa antiga. Sempre penso que o recipiente guarda uma mensagem de uma geração a outra, de um produtor que talvez já não viva mais, que deixou sua herança dentro de uma garrafa. A mensagem na garrafa nos fala do amor do viticultor pela terra, por seu trabalho e nos conta também sobre um estilo de época, a maneira como o mundo era visto naquele tempo. É quase como beber os quadros em um museu.
Paciência
Segundo Francesco Alberoni, para indicar duas formas especiais de passagem do tempo, o budismo japonês usa as expressões “nin” e “ten”. O “nin” é o mundo da paz e da alegria: um dia de “nin” corresponde a um ano de vida em um mundo sem felicidade. O “ten”, o momento extraordinário do amor: um dia de “ten" corresponde a mil anos no tempo do relógio.
O vinho nos ensina uma noção de tempo que está se perdendo em nosso mundo imediatista. Os adeptos de Baco sabem que a elaboração de um bom vinho requer tempo (além de esforço, conhecimento e ajuda da natureza). Desde a colheita até o envelhecimento em garrafa, a noção de causa e conseqüência se dilata e é posta em perspectiva. Ao sacarmos a rolha flagramos o resultado deste demorado e laborioso processo, que pode ter começado décadas
antes.
O vinho nos ensina muito sobre o tempo, nos ensina paciência, nos ensina que existe o momento certo, nos ensina o saber esperar, às vezes por anos, até que uma garrafa atinja seu auge. Depois, ao servir o vinho, precisamos esperar um pouco mais, até que a temperatura seja a ideal, que os aromas se abram no decanter e na taça, até o momento certo, qualitativo e inesquecível, que valerá por mil anos.