Por Marcelo Copello
O crescimento do consumo de vinho no mundo não se deve apenas à fatores econômicos ou motivações de ordem médica. Há também motivos filosóficos, culturais, sociais e psicológicos. Podemos dizer que o nobre fermentado é a bebida do nosso tempo, a que melhor se adapta à vida do homem pós-moderno.
Da Antigüidade à Modernidade, nossa civilização sempre foi repleta de cheiros e gostos. Foi a Pós-modernidade, idéia dominante nas últimas décadas do século XX, que suprimiu olfato e paladar do nosso cotidiano. O mundo da TV e dos computadores é inodoro e insípido. Mas, apesar da evolução do meio, as raízes humanas permanecem. Assim, o vinho ao mesmo tempo remete ao passado e compartilha de muitos traços atribuídos à Pós-modernidade. Façamos uma comparação:
A era em que vivemos caracteriza-se por uma perda de fé em verdades universais, como o Cristianismo ou a Ciência como explicações do cotidiano, e uma correspondente ênfase no pessoal e local. E, odores e sabores são, por natureza, pessoais e locais. Nossa bebida predileta adere a esta tendência por seu poder de globalizar cheiros e gostos. Pode-se provar, através de uma garrafa de vinho, a expressão gustativa de um solo e de um tempo. Ao degustar um Solaia 1990, por exemplo, estaremos nos deliciando com o gosto que só existiu na Toscana, naquele ótimo ano.
Outra característica do mundo de hoje é a mentalidade imediatista. Vivemos num pastiche de estilos e gêneros, tudo junto e ao mesmo tempo. Como diria Borges, um dos precursores do Pós-modernismo na literatura: “Quem era eu? O eu de hoje estupefato; o de ontem, esquecido; o de amanhã, imprevisível?”. Os aromas e sabores de uma bebida são sensações de momento, não podem ser preservadas. Ignoramos como realmente eram os vinhos do passado. Além disso, há ainda o fato inegável de que, cada vez mais, os vinhos são feitos para serem bebidos jovens. Ninguém quer esperar vinte anos para abrir uma garrafa.
A Pós-modernidade é também uma cultura de imitações e simulações, onde as cópias predominam sobre os originais, e as imagens sobre a substância. Quantos enófilos podem pagar por uma garrafa de um grande Bordeaux ou visitar os castelos desta região? Muitos, contudo, compram rótulos de várias partes do mundo, com uvas bordalesas e que apresentam castelos ou abadias em seus rótulos.
No passado, as essências e gostos eram intrínsecos às substâncias. Se um perfume tinha aroma de uma flor, significava que esta flor realmente havia sido utilizada em sua elaboração. Hoje, porém, os aromas sintéticos evocam coisas que não estão lá, presenças ausentes. Temos alimentos com gosto de frutas que nunca existiram ali. Nosso fermentado não tem nada de artificial, mas abusamos de imagens em sua descrição. Quando dizemos que um Merlot evoca ameixas pretas ou um Beaujolais Nouveau cheira à banana, sabemos que estas frutas não estão lá.
Outro ponto relevante da estética pós-moderna é o de que a diferença agrega mais valor que a uniformidade. De uma maneira geral, podemos dizer que onde o modernismo valorizou o estabelecido, estável e compreensível; o pós-modernismo preferiu o flutuante, caótico e intuitivo. E o que é o néctar de Baco senão uma infinita combinação de uvas, solos, gostos e aromas? Um líquido vivo, em constante evolução, onde cada garrafa é única, individual e mutante.
Com um click em seu mouse o indivíduo contemporâneo pode acessar, em tempo real, uma quantidade infinita de dados. Enquanto o sujeito do passado tinha uma concepção firme de sua identidade, estabelecida no terreno estável da razão, o sujeito pós-moderno é inundado por uma profusão de estímulos cujo sentido muitas vezes é apenas intuído. Ele convive com uma infinita e imprecisa complexidade, enquanto o sujeito moderno vivia num mundo de simplificações e certezas científicas. E em qual outra bebida melhor cabe a qualificação de complexa senão no vinho, em sua variedade sem limites e evolução constante?
O homem de hoje vive à procura de sensações, de emoção. Em sua concepção psicológica, a Pós-modernidade declara que deve-se dar mais importância à sensibilidade do que à inteligência, buscando assim, um equilíbrio. E qual bebida melhor inspira harmonia entre razão e emoção?
O principal alvo da revolução pós-moderna é o próprio homem e não a sociedade. Esta é mudada como uma conseqüência da transformação de seus indivíduos. Uma revolução de dentro para fora. O vinho é parte integrante desta revolução cultural. Deixou, nas últimas décadas, de ser uma bebida alimentar popular nos países do velho mundo para globalizar-se, associando-se ao prazer hedonista, à sensibilidade, à saúde, sofisticação, cultura, alegria de viver e renovação, representada por cada nova safra. O vinho tornou-se então, um símbolo nesta reconstrução do homem por si mesmo.
Uma das únicas características de nossa cultura contemporânea que o nobre fermentado não veste é o isolamento. O ser pós-moderno, apoiado em tecnologia e serviços, ameaçado pela violência e pressionado pela competitividade, tende a tornar-se “auto-suficiente” e isolar-se. O vinho é o avesso disso. É gregário, une pessoas em torno de uma garrafa e inspira hábitos que caíram em desuso, como o de conversar e partilhar.