Por Marcelo Copello
“Uma coisa favorável aos bêbados: nunca ninguém viu cem mil bêbados de um país querendo estraçalhar cem mil bêbados de outro país...” Millôr Fernandes.
A intolerância entre os povos, agravada por barreiras culturais, tem na mesa seu mais antigo e eficiente campo de entendimento e aproximação. E nela as bebidas cumprem papel fundamental. Historicamente gregárias, são responsáveis pela união entre os homens. Da missa aos bares, ao elevar dos copos a comunhão se estabelece.
Como na máxima anônima: E o momento síntese desta comunhão é o momento do brinde, quando, após algumas palavras de louvor, bebe- se à saúde de alguém, como voto de êxito ou em comemoração a algum acontecimento.
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O brinde teria se originado na antiguidade durante os acordos de paz entre impérios belingerantes. O mediador do acordo deveria se levantar, proclamar a conclusão do mesmo e tomar o primeiro gole de bebida (normalmente vinho) para mostrar que esta não estava envenenada, demonstrando assim, a boa vontade entre as partes.
O caráter místico que nosso fermentado teve desde os primórdios, quando lhe eram atribuídos poderes transcendentes, levava muitos homens a dedicarem goles desta poção mágica à saúde dos amigos ou ao êxito dos combates. Celtas e gauleses, pode exemplo, punham a circular um vaso cheio de vinho, de mão em mão, bebendo-se à pessoa que se queria honrar. Cada conviva dizia, olhando-a: “a ti bebo”.
O ato do brinde com toque de copos nasceu, segundo Alfredo Saramago, em seu livro “O vinho do Porto na Cozinha”, em uma época em que utilizavam-se recipientes de metal ou vidro fosco, que não deixava que se visse a quantidade de vinho que tinha sido servida. “Para que não houvesse enganos, durante as saúdes os copos deviam tocar-se para os dois oficiantes da saúde saberem que o copo que tocavam estava tão cheio como o seu. Tratava-se de uma oferenda e ao mesmo tempo de um gesto de delicadeza, para que ninguém ficasse mal servido”. Também se elevava, como ainda hoje, o copo à altura do coração, ou da fronte, para imprimir mais intensidade ao bonito gesto do brinde.
Existe uma outra versão, esta mais poética, para o ato de tilintar as taças ao brindar-se. Dionísio, o deus grego do vinho e da fertilidade, teria iniciado a prática de fazer som percutindo as taças umas nas outras para tornar completa a experiência sensorial de degustar-se um vinho. Esta, até então, só evocava quatro dos cinco sentidos: visão, olfato, tato (na boca) e paladar. A audição estava ausente.
O primeiro registro da palavra “brinde” na língua portuguesa data de 1651, no livro “História Universal dos Impérios, Monarchias, Reyno & Províncias do mundo” do padre Manoel dos Anjos. Sua origem etimológica seria alemã, vindo da expressão “ich bring dir's”, algo como “bebo por ti”. Algumas fontes atribuem, ainda, a origem desta palavra à cidade de Brindisi, no sul da Itália.
Apesar de sua origem ancestral, o ato de brindar só se popularizou no século XVI quando começou a virar moda na Inglaterra. Em inglês, a tradução de brinde é “toast” (torrada) e deriva do costume de colocar pão torrado num cálice para dar-lhe sabor de vinho. Quando bebia-se à saúde de alguém, era preciso esgotar o cálice para então chegar a torrada embebida.
Desde então, brindar passou a fazer parte da tradição cultural de todos os povos. Criar frases de efeito, que vão de cômicas à poéticas, transformou-se em arte. Pode-se homenagear pessoas, ocasiões etc, mas são feitos principalmente em ode à bebida e à vida. Normalmente os brindes, não por acaso, começam no final da refeição, depois do prato principal ou da sobremesa, momento em que estamos em paz com nossos estômagos e com a língua mais solta.
Segue uma ritualística: pode-se chamar a atenção dos convidados batendo com um talher na taça ou copo, diz-se o brinde, que pode ser apenas o clássico “saúde”. Só depois bebe-se. No entanto, todos devem beber, de preferência bebidas alcoólicas. Bate-se levemente com o copo no copo de cada um dos bebedores, olhando-os, olhos nos olhos, mesmo que à distância.
Brindes já fazem parte até da mais tradicional etiqueta, como “O Livro de Etiqueta de Amy Vanderbilt”, onde a autora americana chega a oferecer ao leitor uma prática lista de brindes em diversos idiomas, que aqui cito e comento:
Os franceses dizem “santé” ou “salut”, o que já deixa a boca no formato ideal para receber pequenas quantidades de bebida. Os espanhóis erguem suas taças dizendo “salud”, enquanto os italianos gesticulam ao som de “salute”. O universal “tin-tin”, ou “chin-chin”, não é apenas uma onomatopeia para os chineses. Lá “chin” significa “felicidade”, e “chin-chin”, “muita felicidade”. Não confunda: em japonês o brinde é outro, diz-se “kampai”, que quer dizer “copo vazio”.
Alemães dizem “prosit” se a ocasião for informal, e “zum wohl” se for a sério. Para os holandeses, um “proost” fará o serviço. Os russos dizem, sem enrolar a língua, “na zdorov”, ou “felicidade”, semelhantes aos poloneses e búlgaros que gastam menos letras para dizer “na zdrve”. Entre os árabes que bebem diz-se baixinho “fi sihitaek”. Em ídiche, toda a família diz junta “l´chayim!”, “à vida”. Na língua de Platão, pode-se dizer “steniyasas”, “à saúde”, enquanto na de Ghandi brinda-se “aapki sehat”.
O mais curioso, contudo, vem dos nórdicos da Suécia, Dinamarca e Noruega. Ao levantar suas taças, dizem “skäl”, que significa singelamente “caveira”. A origem vem do costume Viking de beber cerveja nos crânios de seus inimigos, esvaziados e limpos como se fossem canecas.
Enaltecer a bebida ou as circunstâncias de seu consumo faz parte de um ritual de comunhão que todo bebedor conhece. Aguça o paladar dos presentes, torna as qualidades do líquido ainda mais extraordinárias e transforma cada ocasião em um evento único e especial.
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