Eu era um grande fã de Anne-Claude Leflaive (17/01/1956 - 05/04/2015). Fã de seus vinhos e fã de sua atitude. Os vinhos me arrebatam e sua atitude, radicalmente fiel a seus princípios, me inspira.
Nos vinhedos esta atitude se traduzia nos princípios da Biodinâmica, que ela aplicava também em sua vida, a tal extremo que faleceu de câncer por se recusar a se submeter a tratamentos químicos.
Só agora, com certa triteza, pouco mais de um ano depois de seu adeus, apresento ao público este vídeo do que deve ter sido uma de suas últimas entrevistas, que fiz ao visitar seu Domaine alguns meses antes de seu falecimento.
O Domaine da família foi fundado em 1905 por seu avô Joseph Leflaive, um ex-engenheiro de submarinos. Anne-Claude assumiu a Domaine 1990, aos 34 anos, após uma juventude onde chegou a viver no Marrocos e ser campeã de windsurfe. Ela imediatamente implementou os princípios da Biodinâmica e foi muito criticada por colegas da região. Em poucos anos os vinhos da Domaine (que estavam em decadência) alcançaram um prestígio sem precedentes e ela tornou-se uma das maiores referências mundias em Biodinâmica. Em 2006 Anne-Claude Leflaive foi eleita pela revista inglesa Decanter a “maior enóloga de vinhos brancos do mundo” e em 2014 recebeu o título de “Winemaker’s Winemaker” dado pelo Institute of Masters of Wine.
Assistam ao video, leiam abaixo sua transcrição e aguardem para amanhã um post com uma incrível degustação às cegas das melhores safras de dois gigantes - o Le Montrachet da Domaine de la Romanée-Conti e o Le Montrachet da Domaine Leflaive.
Marcelo Copello: Eu acabo de provar todos os seus vinhos da safra 2011 e fiquei muito bem impressionado. Você poderia nos explicar um pouco sobre seus vinhos e suas parcelas de vinhedos?
Anne-Claude Leflaive: Temos um total de 24 hectares, divididos em 11 diferenstes AOC´s, nos níveis Bourgogne, village, premier cru e grand cru. Cada um destes terrois é único e especial, mas nós os tratamos exatamente da mesma maneira, como um pai trata cada um de seus filhos. É muito importante trabalhar as videiras e as adegas da mesma maneira. Utilizamos desde 1990 a biodinâmica, uma antiga filosofia de cuidar do solo, da natureza.
MC: Como você percebe os resultados de mais de vinte anos de biodinâmica?
ACL: É uma grande aventura. Uma aventura pessoal, de conhecimento de cada dia, que nos deixa felizes ao ver que as videiras parecem felizes também, porque elas tem menos problemas, menos doenças, o solo é mais macio, você não tem mais produtos tóxicos nas videiras. As pessoas que trabalham no vinhedo são mais felizes também, por trabalhar em um ambiente saudável, sem precisar borrifar produtos tóxicos que impregnam suas roupas e suas peles. Os resultados são 100% positivos, e você pode provar o vinho, e eles tem mais pureza, mais finesse, mais elegância, e o mais importante, os vinhos conseguem captar o melhor de cada terroir. É como se você estivesse bebendo o solo, é como se você estivesse bebendo uma parcela de nossos vinhedos da Borgonha.
MC: O que é mais impressionante na Borgonha é que eu estava andando o dia todo pelos vinhedos e depois provando os vinhos, e cada vinho de cada vinhedo tem um paladar diferente, muito diferente, e são feitas da mesma uva no mesmo lugar.
ACL: Essa é a mágica da Borgonha, e eu acho que é devido a especificidade do solo, que é diferente de um lugar para outro. Um metro de diferença e você tem vinhos diferentes, como por exemplo Bienvenues-Bâtard-Montrachet e Bâtard-Montrachet. Um metro de diferença, dois vinhos diferentes. Eu acho que isso é porque os minerais e oligoelementos e a argila que compõem o solo são completamente diferentes de um lugar para outro. Mas você não vê com os seus olhos, está dentro. É uma espécie de segredo.
MC: O clima da Borgonha não está no céu, mas debaixo na terra.
ACL: E também é importante quando você cuida das videiras deixar as raízes irem bem fundo no solo... E para arar, é importante arar de maneira que você não fertilize o solo na superfície, porque as videiras precisam ir bem bem fundo no solo para se alimentar, para que elas achem o que chamamos de terroir, nas profundezas, nunca na superfície.
MC: Você tem algum planos específico agora, alguma coisa que você queira fazer que ainda não fez, com as videiras ou na sua carreira como produtora de vinhos?
ACL: Essa é uma boa pergunta, eu preciso pensar. Produzir vinhos e cuidar das videiras é uma questão de melhorar a cada dia. Todos os dias nós pensamos o que podemos melhorar, o que podemos fazer diferente para melhorar, então não é “agora acabamos, temos biodinâmica, está bom” e você não pensa mais a respeito, não. Nós vamos para o vinhedo, observamos o comportamento das videiras, provamos o vinho e tentamos todos os dias achar novas soluções e novas maneiras para sermos cada vez melhor. É realmente como uma nova aventura a cada dia.
MC: É um trabalho que não acaba.
ACL: Um exemplo é que nós verificamos que era importante arar com cavalos ao invés de usar máquinas. Então há dois anos nós temos uma pessoa que tem cavalos e pertence à equipe da Domaine e era os vinhedos grand cru. Constatamos que a terra arada com cavalos é completamente diferente. A resposta do solo é completamente diferente. Era curioso verificar o espanto das pessoas que passavam e viam os cavalos. Elas parávam para olhar. É realmente uma harmonia entre o homem, o animal e a terra, dando mais energia ao vinho.
MC: Uma curiosidade: Seu domaine é familiar, você tem muitos primos. Como é trabalhar em família? É complicado?
ACL: Você precisa ter muita paciência, e eu sou muito paciente. Mas eu estou feliz porque é um negócio familiar que funciona muito bem e meu avô, que criou a domaine, estaria muito orgulhoso de ver a terceira (eu sou da terceira geração) e quarta gerações agora. Somos trinta pessoas no total, com o mesmo objetivo de fazer o melhor vinho e ser felizes juntos. Não é sempre fácil, mas funciona.
MC: E qual é o seu sonho?
ACL: Meu sonho é que todos os vinhedos do mundo tornem-se biodinâmicos.
MC: Lindo sonho. E a sua relação com o Brasil, você me disse que gosta do Brasil.
ACL: Sim, eu gosto do Brasil. Eu só fui uma vez ao Brasil, e eu acho que os brasileiros são muito acolhedores, espontâneos, simpáticos, entusiasmados e é um país que nós amamos. Nós amamos o seu país.
MC: Eu sei que você tem planos de ir de barco ao Brasil.
ACL: Sim, meu marido tem um barco a vela e eu tenho um pequeno domaine no vale do Loire. Nós gostaríamos exportar este vinho para o Brasil. Nosso sonho seria levar o vinho de barco a vela, para que o vinho chegue de barco a vela direto no Brasil.
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