“O discurso que se desenvolve à volta do açúcar, lembra o que durante séculos estigmatizou o sexo, que liberalizado, deixou teólogos, moralistas e alguns médicos, sem vítima para exercitarem a queda natural para a repressão”.
Alfredo Saramago, gastrônomo português em seu livro “Doçaria Conventual do Alentejo”.
A relação entre açúcar e prazer é assunto antigo. Para muitos comer doces em privado, por exemplo, soa quase como onanismo. O açúcar de cana veio do oriente médio no século XI, com o status de produto medicinal de grandes virtudes e aos poucos tomou a Europa. Hoje é aceito universalmente e indispensável em todas as cozinhas. Este edulcorante viveu tranqüilo até meados do século XX, quando foi muito questionado. O best seller “Sugar Blues” de William F. Dufty, que fez sucesso nos anos 80 com sua propaganda anti-açúcar, ilustra bem este pensamento.
A história prova, contudo, que dos pecados capitais, a gula sempre foi o mais brando. Um grande exemplo de gastronomia de alto nível como respaldo religioso vem dos conventos portugueses, cujo ápice de sua arte culinária está nas magníficas interpretações doceiras, que glorificam o açúcar, redimindo-o de qualquer pecado. Com quase sempre os mesmos ingredientes: açúcar, ovos e farinha, uma longa lista de quitutes foi criada. Nomes como Toucinho do Céu, Pão de Ló, Pastéis de Santa Clara, Barriguinhas de Freira, Encharcada, Aletria, Bom Bocado, Pastéis de Nata, Pão de Rala, Pudim Abade de Priscos, Sericaia e Ovos Moles fazem aguar os mais xiitas dos sacarófobos.
Estes e muitos outros doces nasceram dentro dos muros de conventos portugueses. As condições que possibilitaram para tal fenômeno são muitas. Com a conquista do território português aos mouros e a unificação do país, a criação de conventos foi uma forma evidente de posse da terra, e como agradecimento a Deus pela dilatação do território. Durante os séculos XIV e XV foi tal crescente o número de conventos que foi necessário alguns concílios promulgarem bulas para conter este crescimento. Só em Évora, chegaram a existir ao mesmo tempo 8 conventos. Estes estabelecimentos mantinham estreita relação com a classe dominante, da qual recebiam esmolas suntuosas e doações de muitos bens. Além disso eram povoados por gente da melhor estirpe. Era comum famílias importantes enviarem filhas que não se casassem até certa idade ou que haviam vivido romance com final escandaloso. O convento era uma saída elegante para situações embaraçosas. Tais moçoilas eram envidas à vida monástica por vezes acompanhadas de criadas, de doações e uma pensão em dinheiro. Outro ponto fundamental é o fato dos conventos serem então a única alternativa digna às casas senhorias, de hospedagem de comitivas de gente importante do reino, quando se deslocavam em viagens.
Em outras palavras, a idéia de pobreza, que acompanha o juízo sobre os conventos portugueses está errada. Durante a maior parte da história destas instituições imperou a abundância. Os conventos eram ricos, habitados e freqüentados por gente importante e de gosto refinado. As religiosas possuíam alto nível gastronômico e a tarefa de preparar refeições para reis e senhores.
Neste contexto os doces desempenhavam um papel de destaque, sempre fazendo parte do fausto das refeições conventuais, mas foi a partir dos séc XV e XVI, com a maior divulgação do açúcar e de algumas especiarias que conquistaram o paladar freirático. Pequenos “mimos” açucarados eram uma forma eficiente de bajular príncipes e conseguir polpudas doações. A doçaria então tomou conta do ócio das religiosas.
Ao longo do país, cada um de seus inúmeros conventos criou suas próprias receitas, que permaneceram secretas até os séculos XVI e XVII, quando o declínio do número de freiras fez necessária a contratação de mão de obra de fora. As empregadas admitidas no convento, que ajudavam na confecção dos doces, levaram as receitas para fora dos claustros. Hoje existem doçarias conventuais em várias regiões do país, preservando receitas ancestrais e atraindo milhares de clientes.
Um dos casos de maior sucesso é “A pousadinha, doçaria regional e conventual” (Estrada E.N. 111 - Tentúgal - 3140 Montemor-o-velho, Tel.: 239-951-158), em Tentúgal, pequena cidade entre Figueira da Foz e Coimbra, na região da Beira Litoral no centro-oeste do país. Sua proprietária, D. Cassilda Amaral Craveiro, tem 40 anos de idade e cozinha desde os 11, quando aprendeu a fazer o famoso Pastel de Tentúgal com suas vizinhas. Segundo D. Cassilda a receita teria vindo de um convento de freiras que existiu na vila. O tal pastel impressiona por sua elaboração. A massa é esticada em uma sala de cerca de 20m2, cobrindo todos seu chão, como um lençol finíssimo e transparente. Depois é recortada em pedaços de cerca de 10cm por 15cm para a montagem do pastel, recheado com ovos-moles. O resultado é um doce irresistível, muito delicado, que derrete na boca. A doçaria produz todo um repertório de doces conventuais, vendendo 4 mil unidades ao dia, para os clientes que precisam pegar senha para serem atendidos.
Várias doceiras da região fazem o mesmo pastel, seguindo a mesma receita, o que diferencia a criação de D. Cassilda, segundo ela mesma é o acréscimo de “um bocadinho de alma”. Como disse São Francisco de Sales: “é preciso alimentar bem o corpo para que a alma se sinta bem dentro dele”. Ao que digo: amém!
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