Qual é o papel da crítica de vinhos? É justo dar notas numéricas? Como mensurar o prazer?
O que é a Web 2.0 e como o poder dos grandes críticos foi afetado por ela?
Estas questões não são novas, mas se revigoram à medida que o mercado se expande por caminhos como a internet, alcançando novos leitores e consumidores a cada dia. Para criticar a crítica, é imprescindível definir o que é criticar. Segundo o dicionário Houaiss, é o “exame racional, indiferente a preconceitos, convenções ou dogmas, tendo em vista algum juízo de valor”. O homo sapiens critica tudo o tempo todo, de forma consciente ou inconsciente. “Gostei”, “não gostei”, “bom”, “ruim”, “melhor”, “pior”. Criticar é uma reação instintiva. É questionar, perguntar. Criticar é humano e saudável, não criticar é bovino. Os cronistas romanos atribuíam grande qualidade ao vinho Opimiano, da safra de 121 a.C. Este grande caldo batizado em homenagem ao então cônsul Opimius, era produzido a partir de um vinhedo chamado Falernum, onde hoje é a região da Campânia (cuja capital é Nápoles) e teria sido consumido até seus 125 anos de idade. Um verdadeiro vinho de guarda.
Definição e origem
É bem verdade que a literatura enológica, em seu início, estava mais voltada para os efeitos do vinho (embriaguez ou seus benefícios à saúde) do que para qualidades intrínsecas. Uma deliciosa leitura que ilustra este estilo é o livro Rubaiyat, do poeta persa Omar Khayyam (1048–1131), com versos de ode ao vinho e seus efeitos psicotrópicos. São muitos também os livros de medicina da Antiguidade, nos quais o vinho é citado como ingrediente de remédios.
A crítica nas antigas Grécia e Roma
Aos interessados no tema uma boa leitura é o livro The Origins of Criticism (Princeton Unive sity Press, 2002), de Andrew Ford. Segundo o autor, a crítica não tem uma data formal de início, mas certamente tem ricos anais que remontam à antiguidade clássica grega. O livro A Arte Poética, do filósofo grego Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.), é um marco na história da crítica literária, pois analisa e julga a produção escrita de sua época. Seu contemporâneo Platão (428 a.C.–347 a.C.) também foi um grande crítico, principalmente da política e dos costumes (além de citar o vinho constantemente em sua obra). Na antiga Grécia, a crítica de vinhos já existia e era muito semelhante à atual. Vejam este texto de Hermippus, poeta ateniense do século V a.C., falando de aromas de maçãs, violetas e rosas: “Doce e generoso vinho da Magnésia e Trácia, do qual aromas de maçãs afloram. Julgo este como o melhor de todos os vinhos, depois do bom e inofensivo Chian. Há um certo vinho chamado Saprias, de cujas jarras exalam aromas de violetas, rosas, um aroma sagrado que se expande por todo o salão”. Até o século XVIII, os livros sobre o fermentado versavam sobre o plantio da vinha, os seus usos medicinais e sua elaboração, raramente dedicando-se à apreciação e avaliação da bebida. Apenas em 1793 o termo “provador” foi designado pelos lexicógrafos franceses como “aquele cujo ofício é provar vinhos” e a palavra “degustar” só surgiu nos textos franceses em 1813. O primeiro livro a tentar analisar a ciência da degustação foi provavelmente The History of Ancient and Modern Wines, escrito em 1824 pelo doutor Alexander Henderson. A obra Études sur le vin, de Louis Pasteur, publicada em 1866, foi de grande importância. Publicação eminentemente científica, ao explicar a fermentação alcoólica e o papel do oxigênio na degradação dos vinhos, suscitou uma vontade maior de compreender a bebida. O século XIX viu, então, o florescimento de uma literatura voltada para as qualidades sensoriais do vinho, sua apreciação e, consequentemente, avaliação. Disseminava-se então a crítica de vinhos.
O poder da crítica de vinhos
O século XX viu o mundo mudar sob vários aspectos: o capitalismo, a sociedade do consumo, a variedade de produtos, a possibilidade de escolha. Após a Segunda Guerra Mundial e mais acentuadamente a partir dos anos 1970, o vinho tornou-se a bebida da classe média e as publicações especializadas viveram um verdadeiro boom. Não por acaso, em 1976 foi criada a revista Wine Spectator, por exemplo. O poderoso crítico americano Robert Parker Jr. Também surgiu nesta época, com seu jornal The Wine Advocate, que alcançou notoriedade a partir da safra 1982– uma grande safra em Bordeaux. No mesmo período, os vinhos do Novo Mundo surgiram como importantes players do mercado, o que trouxe em seu bojo uma nova maneira de degustar e apreciar o vinho, aumentando a importância da crítica. O famoso “Julgamento de Paris”, um marco na ascensão dos vinhos do Novo Mundo, é de 1976. A então emergente indústria do vinho do dito Novo Mundo, carecendo da milenar história europeia, enfatizou os prazeres sensoriais da bebida. Os críticos que ascenderam na época, apoiados nas provas cegas (onde o líquido fala por si), ressaltaram este ponto, mostrando que era (e é) possível comprar vinhos de grande qualidade pagando bem menos do que o necessário para adquirir os renomados vinhos clássicos europeus. Para descobrir tais vinhos, no entanto, é necessário provar as novidades aos milhares e militantemente: tarefa para críticos profissionais. Este contexto fez com que as últimas décadas dessem origem a uma nova e brilhante geração de críticos cujos guias povoam as livrarias de todo o mundo, como os ingleses Hugh Johnson, Jancis Robinson, Michael Broadbent, Oz Clark e Charles Metcalfe; os americamos Robert Parker, James Suckling, Matt Kramer, Stephen Tanzer, Joshua Greene; o francês Michel Bettane; os italianos Luigi Veronelli, Luca Maroni e Danielle Cernilli; o espanhol José Peñin; os portugueses João Paulo Martins, João Afonso e Rui Falcão; o sul africano John Platter, o chileno Patricio Tapia, o australiano James Halliday e o canadense Anthony Gismondi. Mas o quanto estes personagens e a precisão de seus palatos nos influenciam escolha de um vinho? Certamente muito. Os principais guias do mundo chegam a vender milhões de exemplares a cada ano. A revista Wine Spectator tem cerca de três milhões de leitores em todo o mundo. As lojas especializadas exibem as notas de cada vinho ao lado de seus preços e, como já dito, catálogos de importadoras trazem a opinião dos mais renomados críticos de cada país. A verdade é que, de um lado, temos um grande mercado em formação em todo o mundo, com milhões de novos apreciadores da bebida, ávidos por informação e sem tempo e recursos financeiros para provar muitos vinhos. Do outro lado há uma variedade imensa (e incomensurável) de novos rótulos surgindo a cada dia. Fala-se, por exemplo, em algo perto de 30 mil rótulos de vinhos importados de 32 países presentes no Brasil, representados por cerca de 300 importadoras. No centro desta arena estão os gurus báquicos empunhando suas taças.
Como a Web 2.0 afeta o consumidor e a crítica do vinho
Este novo cenário, provocado por transformações tecnológicas, gera um novo comportamento do consumidor, ao qual às empresas precisam se adaptar. Hoje o consumidor está a um click da concorrência ou de uma infinidade de informações sobre o produto. Do próprio celular, de qualquer lugar, loja ou restaurante, o consumidor pode conferir o preço de um vinho na origem e a opinião de um crítico. Não adianta mais exagerar na qualidade ou no preço de um vinho, seja no contrarrótulo ou na carta de um restaurante, o consumidor saberá. Os enófilos estão mais bem informados, em tempo real. Compram com mais discernimento, e estão agrupados em comunidades, com as quais as empresas precisam dialogar. Fazer bom vinho já não basta, é preciso se relacionar com os consumidores, de uma forma que nunca foi possível antes. A tecnologia rompeu barreiras e possibilita a comunicação instantânea entre a empresa e os clientes, satisfeitos ou insatisfeitos. O diálogo, o respeito e a transparência são as palavras de ordem para qualquer empresa que queira sobreviver à nova onda. Para o trade do vinho, é fundamental estar presente em todas as mídias, em diálogo constante com a comunidade, respeitar os enófilos (nada de spam) e ser transparente em suas ações, decisões e até defeitos, pois, mesmo que exista um problema, uma resposta rápida e honesta contribui para o aumento da credibilidade. Na ponta do lápis, a presença e postura correta na internet compensam. Para o varejo, por exemplo, o e-commerce rendeu no Brasil em 2012 cerca de R$ 23 bilhões, com 32 milhões de e-consumidores, muitos deles compradores de vinho. No que diz respeito à crítica de vinhos, fala-se muito que a Web 2.0 estaria acabando com o poder ditatorial dos grandes críticos, como Robert Parker. De fato, ditadura não há mais, já que enófilos dispõem de muitas fontes de informação. Por outro lado, o poder dos críticos é propagado e multiplicado pela Web 2.0. Usando sempre o guru de Baltimore como exemplo, ao mesmo tempo que se fala mal dele, sua opinião e suas notas são repetidas em incontáveis sites, blogs e redes sociais (além de catálogos de importadoras). Parker perdeu força, mas ganhou alcance. Podemos concluir falando do futuro: a próxima onda da informação (hoje democrática, mas caótica) terá que ser organizada e selecionada. O poder continuará com os usuários, mas o valor será de quem oferecer informação de relevância com credibilidade. O destaque voltará aos especialistas que deverão atuar de forma mais transparente e democrática, em diálogo aberto com suas comunidades, clientes e usuários.
Ameaças e oportunidades da Web 2.0
Recebemos diariamente uma enxurrada de informações pela internet, muito maior do que nossa capacidade de absorção. Está tudo lá, ao alcance de um click, uma montanha de estímulos, desejados ou não, de fontes variadas, nem sempre confiáveis, causando por vezes transtornos. A internet é encarada ao mesmo tempo com pessimismo e euforia, uma ameaça e uma fonte inesgotável de oportunidades. Proliferaram nos útlimos anos obras que analisam este fenômeno. O livro O Culto do Amador, de Andrew Keen (Editora Zahar), pinta um cenário negro, onde os amadores com seus posts destruirão toda a cultura da humanidade. A geração superficial: o que a internet está fazendo com nossos cérebros, de Nicolas Car (Editora Agir), é outra obra que alerta para os perigos da internet, especialmente para a forma não linear e menos aprofundada de leitura na web, que afeta nossa capacidade de concentração. Segundo Car, muitas pesquisas sobre mídias digitais atestam que a internet nos coloca em um estado de distração perpétua, bombardeados por interrupções constantes. Mais otimista, Clay Shirky, em seu livro Lá vem todo mundo: o poder de organizar sem organizações (Editora Zahar), exalta a natureza colaborativa da web, que leva à democraticação de informações, em um grande diálogo global. Para Shirky, a internet “organiza sem a necessidade de organizações”, descentralizando o acesso à informação, conectando pessoas com interesses comuns e enfraquecendo centros de poder.
Era da informação X Credibilidade ou relevância
Desde sua criação, em 1992, a Word Wide Web, ou simplemente internet, passou por muitas mudanças. Em uma primeira onda, a rede encheu-se de conteúdo, seguindo um modelo de comunicação ou de geração de cultura preexistente. Falo do modelo que vem dos livros, revistas, discos, rádio e TV, onde um indivíduo, grupo ou organização, detentor da informação, gerava conteúdo para muitos usuários, ouvintes ou leitores. Estamos atualmente vivendo uma segunda onda com a Web 2.0, a chamada era da colaboração, onde o fluxo de informação é de muitos para muitos e onde não existe mais o dono da informação. Muitos teóricos dividiram a história recente em “era industrial” X “era da informação”. Na primeira o poder é de quem detém os meios de produção, na segunda o poder é de quem detém a informação. Hoje, através da Web 2.0, a informação está disponível para todos, e todos podem gerar a informação.
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