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Conheça a Borgonha, o milagre do terroir

Conheça a Borgonha, o milagre do terroir

23/03/2017

Marcelo Copello

Mundo do Vinho

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Por Marcelo Copello, de Puligny-Montrachet

 

A Borgonha é um milagre. Como tal, é mais fácil de ser vivenciada do que explicada, embora tentemos bravamente na matéria a seguir. A Borgonha é um caso sem paralelo na história do vinho. Um questão de detalhes, de muitos, inúmeros detalhes, que aguçam nossa sensibilidade e causam deslumbramento em todo discípulo de BACO a quem se revelam.

Localização

Localizada no centro leste da França, a Borgonha soma cerca de 28 mil hectares de vinhedos (apenas 3% dos vinhedos do país), com uma produção anual que ronda os 145 milhões de litros, dividida em 61% brancos, 31% tintos e rosés e 8% espumantes. A região vinícola da Borgonha é bastante extensa, começando ao norte na cidade de Auxerre e aindo em direção sul até Lyon. São 5 suas sub-regiões, Chablis, Côte d´Or, Côte Chalonnaise, Mâconnais e Beaujolais. De longe a região de maior prestígio é a Côte d´Or, onde estão todos os Grand Crus (excero os Chablis Grand Crus).  A Côte d´Or tem apenas 40km de extensão e largura que varia de 2km a apenas 200m em algumas áreas. Seu prestígio é tanto, que muitas vezes ao nos referirmos à Borgonha, na realidade estamos nos referindo apenas a seu coração, a Côte d´Or, e é desta pequena área que falaremos à seguir.

 

Histórico

Embora a vinha já resida na Borgonha a mais de 7 mil anos e as referências escritas ao vinho na região remontem ao ano 312, falar da história do vinho aqui é falar das ordens monásticas, começaram a atuar na região no século VII. A abadia de Cluny foi fundada em 909 por monges beneditinos, equanto a abadia de Cîteaux foi fundada em 1098, por monges cisterciences. No século XII os beneditinos já possuíam mais de 10.000 membros e 1.200 monastérios na França, Alemanha, Espanha, Itália e Inglaterra, sob o controle da Cluny - que foi a maior igreja da Europa até a construção da basílica de São Pedro em Roma no século XVII. Beneditinos e Cisterciences comaçaram a desenvolver a viticulcura e enologia da Borgonha e no séclo XIV, boa parte dos vinhedos da região já eram identificados.

Condições ideais

Estes mosteiros criaram um ambiente ideal para a descoberta e desenvolvimento dos terroirs da Borgonha, pois eles dispunham de alguns ingredientes raros: 1-proteção, 2-troca de informações, 3-tempo, 4-atitude, 5-recursos e 6-continuidade.

1-Os mosteiros eram protegidos das guerras e de instabilidades no ambiente social/político/econômico; 2-formavam entre si uma fabulosa rede de troca de informações, com ramificações por toda a Europa; 3-monges e freiras tinham tempo, viviam nos vinhedos; 4-os religiosos tinham atitude, eram estudiosos e sensíveis, tinham método e conhecimento, acompanhavam ano a ano a evolução dos vinhedos/vinhos. 5-os mosteiros tinham recursos financeiros, eram donos de muitas terras, produziam mais vinho do que precisavam e vendiam o excedente; 6-os mosteiros representavam uma continuidade de trabalho sem par na história do vinho - passavam de geração a geração seus conhecimentos. Vinhedos famosos como Clos de Bèze, por exemplo, teve apenas 2 donos desde a fundação em 640 até a revolução francesa em 1790. Outro exemplo é o Clos de Vougeot, que fundado 1115 teve apenas um dono até 1790.

Neste periodo, do ano 1.000 circa, até a revolução francesa (quando os vinhedos foram confiscados e vendidos), os monges identificaram quais as melhores castas e classificaram os vinhedos da região.

Conceito - entender a Borgonha

Enquanto Bordeaux foi impulsionada pelo mercado inglês e pela competição, voltada para exportação e para o mercado, a Borgonha foi inventada pelas ordens monásticas, muito mais presentes e atuantes na França (e Alemanha) que na própria sede da igreja, a Itália.

Enquanto a classificação de Bordeaux de 1855 foi baseada em preços, com forte disputa entre os produtores, a classificação da Borgonha foi cunhada por monges, sem nenhum interesse comercial, voltados apenas para a máxima qualidade. Bordeaux era negócio, Borgonha era religião e um status de qualidade para a nobreza. Enquanto os Bordeauxs eram exportados, os Borgonhas eram consumidos pela nobreza e igreja. Ao contrário de Bordeaux, na Borgonha o comércio sempre teve um papel secundário e uma influencia menor na viticultura e enologia. Na Borgonha a mais alta qualidade sempre foi o único objetivo, não o lucro. Para os nobres, ser dono de um bom vinhedo na Borgonha era uma indicação de status. Quando o principe Conti comprou o vinhedo Romanée em 1760, ele reservou sua produção inteira para seu uso pessoal.

Noção de terroir* e conceito de climat

Terroir não pode ser provado, explicado ou mensurado, mas é real e pode ser percebido pelos sentidos. E não há local no mundo lugar para perceber o terroir como a Borgonha.

A devoção borgonhesa (e francesa) ao terroir não se explica apenas pela influência monástica, mas também por uma característica da cultura francesa, de prezar a diversidade. Na França não se tenta que um vinhedo replique a qualidade do outro, mas que ele se expresse como ele mesmo. Esta mentalidade é quase oposto de culturas orientais que apreciam a imitação/repetição e da cultura de massa americana, que busca o conforto do padrão, almejando o "padrão de qualidade". Na Borgonha a qualidade não tem padrão, lá a qualidade é o padrão.

É bom lembrar que um grande terroir depende da mão do homem para gerar um grande vinho. Senão como explicar que hajam vinhos tão distintos de um mesmo vinhedo. É o homem que o entende e desenvolve o potencial da natureza e o expressa no vinho.

A palavra climat refere-se a um vinhedo individual ou mais frequentemente a uma parcela de um vinhedo. Através dos séculos de trabalhos dos monges, a quilidade dos vinhos de alguns determinados climats se mostraram superiores a outros. Autores do século XIX já faziam suas classificações, que foram formalizadas em 1936 com a criação das Appellation d'Origine Contrôlée (AOC), leia a seguir. 

NOTA DE RODAPÈ

*Terroir é o conjunto de fatores ambientais que influem em um vinho, como solo, subsolo, sol, chuvas, temperatura, amplitude termica, vento, relevo, micro-organismos etc.

O terroir da Borgonha

Sabe-se que o solo influencia a qualidade dos vinhos, mas não há contudo estudos conclusivos indicando relação entre solo e aromas/sabores específicos no vinho. Não é possível também dizer qual o solo perfeito, já que grandes vinhos são feitos em solos totalmente diferentes. Mas sabe-se também, desde a idade Média na Côte d´Or, quais as melhores parcelas de solos, pois deles vem os melhores vinhos.

O relevo da Côte d´Or tem altitudes entre 240 e 400m e é formado por um conjunto de suaves colinas (com  inclinação máxima de 20% e média de 5%), em geral voltadas para leste, recebendo sol da manhã. A grosso modo podemos dividir estas encostas em três camadas. A de cima terá solo mais pedregoso e raso, pois a erosão já arrastou a cobertura, mais permeável e seco, devido a inclinação que tende a drenar a água para as camadas inferiores. A camada de cima terá também ar mais fresco, o que implica em amadurecimento lento, colheita mais tardia, com risco de geadas. A camada do centro tem solos mais profundos, permitindo raizes mais fundas, com melhor retenção de calor e água. A camada mais abaixo tende a ter solo mais argiloso e espesso, mais úmido (recebe a água drenada das camas de cima), pouco permeável e, por conseqüência, mais frio, concentrando mais nitrogêncio e dando mais vigor às vinhas. O lençol freático será também mais raso no bloco inferior, algumas vezes se aproximando das raízes das videiras, o que é ruim. Na Borgonha podemos dizer que em geral quanto mais raso e calário o solo, mais elegante o vinho (seriam os vinhos da camada de cima), quanto mais vigoroso e argiloso o solo, mais encorpado o vinho (seriam os vinhos da camada de baixo). Geralmente os melhores vinhos vem da camada do meio, com equilíbrio entre finesse e substância. É daí que vem todos os Grand Crus, com exceção de parcelas do Batârd-Montrachet e do Clos de Vougeot, que atingem a camada de baixo.

A Cote d´Or é divida em duas sub-regiões, a Côte de Nuits e Côte de Beaune. A primeira é dominada pelos tintos da Pinot Noir e a segunda é mais focada nos brancos da Chardonnay. Na Côte de Nuits estão todos Grand Crus tintos da Borgonha (a exceção é o Corton, que pode ser tinto ou branco), enquanto na Côte de Beaune estão todos os Grand Cru brancos menos dois, o Musigny (que pode ser tinto ou branco) e os Chablis Grand Cru.

Pinot Noir e Chardonnay

Várias variedade são permitidas na Borgonha, como Gamay e Aligoté, mas na prática todos os grandes vinhos são feitos com apenas uma tinta - Pinor Noir, e uma branca - Chardonnay, que juntas representam 84% da área plantada da região. Na Borgonha as castas são meros instrumentos de expressão do terroir. O fato de usaram apenas uma tinta e uma branca evidencia isso ainda mais, especialmente em se tratando de duas castas muito sensíveis e sujeitas a doenças, em especial a Pinot Noir.

O rendimento é uma palavra chave para a qualidade, na Borgonha podar é fundamental. Por lei o rendimento é bastante flexível, de modo que é cada produtor que controla seu nivel de poda. O rendimento de um bom Pinot Nooir fica na casa dos 30 hectolitos por hectare e para Chardonnay na casa dos 40 hl/ha. O resultado no entando é de qualidade sem par, dada a grande sensibilidade destas uvas (em especial a Pinot Noir), á todas as variantes do terroir (solo, subsolo, inclinação, drenagem etc) e todas as variantes da vinificação (temperatura da fermentação, duração da maceração, barricas etc). A Pinot Noir prefere solos bem drenados de marga (pedras compostas de argila e calcário), em colinas mais inclinadas e bem expostas ao sol; enquanto a Chardonnay, que prefere solos calácios, com alguma argila - é a proporção de argila que dará mais corpo, enquanto o calcário dará aromas e elegância.

Classificações Principais regiões e AOC´s

A Borgonha é de longe a região no mundo mais classificada e subdividida, muitas vezes descrita como um mosaico. Esta pequena região faz apenas 3% do vinho da França, mas detém cerca de 20% das Appellation d'Origine Contrôlée (AOC) do país. São 100 AOC, e muitas delas são divididas em climats. Um climat/lieu-dit é uma área delimitada de um vinhedo com qualidade e individualidade reconhecidas ao longo do tempo. Na pequena Borgonha existem alguns milhares de  climats e para complicar, um mesmo climats pode ter vários donos, que fazem vinhos qualidades diferentes.

As AOC borgonhesas estão divididas em 4 níveis: Regionais, Comunais, Premier Crus e Grand Crus. As primeiras são as mais genéricas, representam cerca de 51% de todo o vinho da Borgonha e se referem ao nome de uma uva ou uma extensa área dentro da Borgonha. Ex: Appellation Bourgogne Aligoté Contrôlée, Appellation Bourgogne-Côte-Chalonnaise Contrôlée. A segunda traz o nome da vila onde está o vinhedo, representam 37% da produção e trazem o nome da vila no rótulo. Ex: Appellation Nuits-Saint-Georges Contrôlée. A terceira representa apenas 10% da produção, e traz no rótulo o nome do climat após o nome da vila. Ex: Nuits-Saint-Georges Premier Cru Les Vaucrains. A quarta, a dos Grand Crus, topo da pirâmide com apenas 1,4% da produção, traz apenas o nome do climat e são apenas 33 - 1 para Chablis, 24 na Cote de Nuits e 8 na Cote de Beaune. Ex: Appellation Clos de Vougeot Grand Cru Contrôlée.

Em ordem alfabética: Bâtard-Montrachet , Bienvenues-Bâtard-Montrachet, Bonnes-Mares, Chablis Grand Cru, Chambertin, Chambertin-Clos de Bèze, Chapelle-Chambertin, Charlemagne, Charmes-Chambertin, Chevalier-Montrachet, Clos de la Roche, Clos de Tart, Clos de Vougeot, Clos des Lambrays, Clos Saint Denis, Corton, Corton-Charlemagne, Criots-Bâtard-Montrachet, Échezeaux, Grands Échezeaux, Griotte-Chambertin, La Grande Rue, La Romanée, La Tâche, Latricières-Chambertin, Mazis-Chambertin, Mazoyères-Chambertin, Montrachet, Musigny, Richebourg, Romanée-Conti, Romanée-Saint-Vivant, Ruchottes-Chambertin.

Dificuldades e preço

Porque é tão difícil beber um grande borgonha? Comprar borgonhas é um esporte radical, para aqueles que aceitam uma certa dose de risco e estão dispostos a estudar um pouco sobre a região e seus produtoes. O volume de produção dos melhores vinhos é ínfimo, o que os torna caros e raros. Ao mesmo tempo qualidade das safras varia imensamente e há muitos produtores, bons e maus, compartilhando um mesmo vinhedo. Na Borgonha nunca é garantido um bom vinho, mesmo de grandes produtores, mesmo de grandes safras, mesmo com grandes preços. Para minimizar o risco é preciso saber quais os bons produtores, quais os melhores vinhedos e se este produtor fez um bom vinho naquele vinhedo, naquele ano. Não se guie pelo preço, ao contrário de Bordeaux, na Borgonha as safras ruins custam quase o mesmo preço das boas. Ao contrário de Bordeaux aqui quem define preços não é o negociante mas o vinhateiro, cujo trabalho é o mesmo, senão maior, nos anos ruins, e pensam: "compra quem quer". Na prática os vinhos dos melhores produtores já está todo vendido e com fila de compradores. 

Boas compras

Um grande borgonha exerce fascínio, encanto e espanto. Mas cuidado, o espanto pode vir também na fatura do seu cartão de crédito. Como quase sempre no mundo do vinho, as melhores compras vem dos nomes menos conhecidos. Para bons custo-benefício recomendamos as seguintes AOCs. Para tintos e brancos: Savigny-lès-Beaune, Volnay, Pernand-Vergelesses, Auxey-Duresses, Haut Cote de Nuits e Haut Cote de Beaune. Para tintos: Chassagne Montrachet, Ladoix-Serrig

Leia também: Pinot Noir, um resuminho pra você

Marcelo Copello

Marcelo Copello


Marcelo Copello é um dos principais formadores de opinião da indústria do vinho no Brasil, com expressiva carreira internacional. Eleito “O MAIS INFLUENTE JORNALISTA DE VINHOS DO BRASIL” pela revista Meininger´s Wine Business International, e “Personalidade do Vinho” 2011 e 2013 pelo site Enoeventos.

Curador do RIO WINE AND FOOD FESTIVAL, e Publisher do Anuário Vinhos do Brasil, colaborador de diversos veículos de imprensa, colunista da revista Veja Rio online. Professor da FGV, apresentador de rádio e TV, jurado em concursos internacionais de vinho, como o International Wine Challenge (Londres). Copello tem 6 livros publicados, em português, espanhol e inglês, vencedor do prêmio Gourmand World Cookbook Award 2009 em Paris e indicado ao prêmio Jabuti.

Especialista no mercado e nos negócios do vinhos, fazendo palestras no Brasil e no exterior, em eventos como a London Wine Fair (Londres). Copello é hoje um dos palestrantes mais requisitados. Para saber mais sobre as palestras e serviços de Copello clique AQUI

  

Contato: contato@marcelocopello.com