Por Marcelo Copello
Grand Cru* Classé en 1855. Dizeres como este aparecem em diversos rótulos de vinhos bordaleses e se referem a uma classificação dos vinhos do Médoc (sub-região de Bordeaux) feita neste célebre ano. Quase 160 anos depois esta hierarquia ainda é de grande relevância, eternamente polêmica e (como vamos provar) essencialmente ainda coerente. A seguir dissecaremos esta classificação, sua história, curiosidades e, em um raríssima degustação de TODOS os 61 Grands Crus Classés de 1855, proporemos algo ousado: uma reclassificação desta quase dogmática hierarquia.
*Cru, palavra francesa que em tradução literal significa "crescido", designa vinhos de um vinhedo/origem específica.
Antes de 1855
No excelente livro "1855 - a history of the bordeaux Classification" o autor Dewey Markham Jr. lista duas dúzias de classificações pré 1855, e cita a existência de outras tantas.
É um erro pensar que só houve esforços para hierarquizar os vinhos de Bordeaux em 1855. Desde o século XVII, quando a região começou a exportar seus vinhos, estes começaram a ser informalmente classificados pelo trade e por consumidores. O próprio governo de Bordeaux já havia proposto em 1740 uma classficação dos vinhos, com o intúito de cobrar impostos diferenciados.
E porque a obsessão por classificações? Maquiavel nos ensinou: dividir para conquistar. Em uma região que hoje conta com cerca de 9 mil produtores de vinho é natural que se tente separar o joio do trigo.
É bom lembrar também que não apenas Bordeaux foi alvo de ordenações em seus produtos. Vários autores da época propõem classificações de vinhos de outras regiões e países. O livro "A history and description of modern wines", de Cyrus Redding, lançado em 1833 (portanto 22 anos antes da classificação oficial de Bordeaux), já ordenava vinhos como de "primeira classe", "segunda classe" e "terceira classe" (já com Margaux, Lafite, Latour e Haut-Brion listados como primeiros), e hierarquizava também vinhos da Itália, Espanha, Canárias, Alemanha, Portugal, Hungria, Austria, Eslovênia e Africa do Sul.
De longe, contudo, Bordeaux sempre liderou como região alvo de classificações. Vários autores pré 1855 publicaram em livro suas hierarquias, como Guillaume Lawton (1815), Wilhelm Franck (1845) e Charles Cocks (1846), além do presidente americano Thomas Jefferson, que visitou a região em 1787 quando chefiava a embaixada dos EUA na França. Mas porque Bordeaux? Enquanto os champagnes são grandes marcas, com vinhos elaborados com uvas de vários vinhedos, que podem mudar a cada safra, e a Borgonha é constantemente frangmentada em uma infinidade de proprietários com produções ínfimas, Bordeaux está lá, quase imutável. Bordeaux consegue o feito único no mundo de ter uma grande quantidade de grandes vinhos - os mesmos vinhos - com poucas modificaçõe nos seus vinhedos e nomes, com qualidade consistente, que pode ser rastreada ao longo de séculos, conquistando assim uma inigualável reputação internacional.
A exposição universal de 1855
A Grande Exposição de Londres em 1851 (ou Great Exhibition of the Works of Industry of all Nations) foi um estrondoso sucesso. 15 mil expositores ocuparam 20 mil metros quadrados do palcácio de cristal no Hyde Park, para mostrar as conquistas da era vitoriana e da revolução industrial.
A França não poderia ficar atrás. Paris, que havia sofrido uma extensa reforma urbana promovida por Georges-Eugène Haussmann, ostentavam amplos boulevards e queria demosntrar sua prosperidade. A Exposição Universal de 1855, em Paris (ou Exposition Universelle des produits de l'Agriculture, de l'Industrie et des Beaux-Arts), durou 6 meses, de 15 de maio a 15 de novembro e superou os ingleses. Foram 5,2 milhões de visitantes e expositores de 34 países espalhados por 160 mil metros quadrados.
A classificação 1855
Uma exposição que apresentasse os melhores produtos da França não estaria completa sem os vinhos de Bordeaux. Assim Napoleão III encomendou à Câmera de Comércio de Bordeaux (Chambre de Commerce de Bordeaux) uma classificação dos vinhos.
Com o óbvio prenúncio de reclamações por parte dos produtores, esta tarefa foi passada ao Sindicato de Negociantes (Syndicat des Courtiers), pois estes eram os únicos que possuíam um completo registro de todos os números do comércio da região. Os negociantes anotavam datas, volumes e preços, com frequencia mensal (às vezes diária) e poderiam assim com facilidade classificar os vinhos em diferentes categorias de preços. Além de seu próprios registros os negociantes tinham como referências principais as anotações do americano Thomas Jefferson e do inglês Charles Cocks. Jefferson classifcou seus vinhos prediletos em 3 categorias, no topo colocou o "Haubrion" entre os tintos e o "Diquem" entre os brancos doces, acrescentando Margaux, Latour e Lafite no time de cima. Cocks, convivia com os negociantes e conhecia bem os preços praticados, classificou os Châteaux em 5 categorias. O sindicato levou apenas duas semanas para preparar uma classificação, baseada no preço médio dos vinhos entre 1815 e 1855. Como era esperado houve um enorme descontentamento por parte de um sem numero de chateaux que ficaram de fora... Um total de 57 vinhos foram originalmente listados (divisões de propriedades fizeram com que os 57 hoje sejam 61- veja estas modificações a seguir, além das inumeras mudanças de nomes).
A classificação original
Premiers Crus (1er) ou Primeiros
Château Lafite, hoje Château Lafite Rothschild, Pauillac
Château Latour
Château Margaux
Haut-Brion, hoje Château Haut-Brion
Mouton, hoje Château Mouton Rothschild (promovido em 1973)
Deuxièmes Crus (2ème) ou Segundos
Rauzan-Ségla, hoje Château Rauzan-Ségla
Rauzan-Gassies, hoje Château Rauzan-Gassies
Léoville (depois dividido em 3 propriedades: Château Léoville-Las Cases, Château Léoville-Poyferré e Château Léoville-Barton)
Vivens Durfort, hoje Château Durfort-Vivens
Gruaud-Laroze, hoje Château Gruaud-Larose
Lascombes, hoje Château Lascombes
Brane, hoje Château Brane-Cantenac
Pichon Longueville (depois dividido em 2 - Château Pichon Longueville Baron e Château Pichon Longueville Comtesse de Lalande)
Ducru Beau Caillou, hoje Château Ducru-Beaucaillou
Cos Destournel, hoje Château Cos d'Estournel
Montrose, hoje Château Montrose
Troisièmes Crus (3ème) ou Terceiros
Kirwan, hoje Château Kirwan
Château d'Issan
Lagrange, Château Lagrange
Langoa, hoje Château Langoa-Barton
Giscours, hoje Château Giscours
St.-Exupéry, hoje Château Malescot St. Exupéry
Boyd (depois dividido 2 - Château Cantenac-Brown e Château Boyd-Cantenac
Palmer, hoje Château Palmer
Lalagune, hoje Château La Lagun
Desmirail, hoje Château Desmirail
Dubignon (foi extinto e seus divididos entre Ch. Margaux, Ch. Palmer e Ch. Malescot St. Exupéry)
Calon, hoje Château Calon-Ségur
Ferrière, hoje Château Ferrière
Becker, hoje Château Marquis d'Alesme Becker
Quatrièmes Crus (4ème) ou Quartos
St.-Pierre, hoje Château Saint-Pierre
Talbot, hoje Château Talbot
Du-Luc, hoje Château Branaire-Ducru
Duhart, hoje Château Duhart-Milon
Pouget-Lassale e Pouget, hoje unidos como Château Pouget
Carnet, hoje Château La Tour Carnet
Rochet, hoje Château Lafon-Rochet
Château de Beychevele, hoje Château Beychevelle
Le Prieuré, hoje Château Prieuré-Lichine
Marquis de Thermes, hoje Château Marquis de Terme
Cinquièmes Crus (5ème) ou Quintos
Canet, hoje Château Pontet-Canet
Batailley (dividido em Château Batailley e Château Haut-Batailley)
Grand Puy, hoje Château Grand-Puy-Lacoste
Artigues Arnaud, hoje Château Grand-Puy-Ducasse
Lynch, hoje Château Lynch-Bages
Lynch Moussas, hoje Château Lynch-Moussas
Dauzac, hoje Château Dauzac
Darmailhac, hoje Château d'Armailhac
Le Tertre, hoje Château du Tertre
Haut Bages, hoje Château Haut-Bages-Libéral
Pédesclaux, hoje Château Pédesclaux
Coutenceau, hoje Château Belgrave
Camensac, hoje Château de Camensac
Cos Labory, hoje Château Cos Labory
Clerc Milon, hoje Château Clerc-Milon
Croizet-Bages, hoje Château Croizet Bages
Cantemerle, hoje Château Cantemerle (incluído em 1856)
As (raras) mudanças
O Château Cantemerle foi incluído na lista em 1856, sob alegação de não estar na lista original por simples erro. A única mudança significativa ocorrida até hoje foi a promoção do Château Mouton Rothschild de 2ème para 1er, em 1973, após 118 anos de reclamações. O feito inédito se deve a perceverança (e influência) do Barão Philippe Rothschild. De fato o Mouton tinha historicamente preços que o colocavam a meio caminho entre os 1er e os 2ème.
Polêmica e conclusões
Embora a maior parte dos Chateaux classificados em 1855 ainda façam seus vinhos a partir dos mesmos vinhedos, várias mudanças ocorretam ao longo destes anos. Vinhedos mudaram de donos, expandiram-se ou foram divididos, o que torna a classificação questionável, já que não é vinculada ao terroir e sim ao Château.
Muitos críticos propuseram desde então uma nova classificação, incluindo Robert Parker, que em seu livro "Bordeaux" publicou um ranking pessoal de 100 vinhos em 5 categorias. Em 2009 a London International Vintners Exchange (Liv-ex), bolsa de trocas e investimento em vinho, lançou uma reclassificação inédita. Como na original, o critério eram preços, só que preços atuais, cotados dinamicamente. Estas cotações podem ser consultadas em www.liv-ex.com.
Podemos concluir que a histórica classificação de 1855 foi e é, antes de tudo um tremendo instrumento de marketing para a região como um todo (e para toda a França).
Leiam no post de amanhã uma incrível prova com TODOS os Bordeaux classificados em 1855, todos da safra de 1986, na qual proponho uma reclassificação.
Outras classificações em Bordeaux
Reparem que dos 57 vinhos oroginalmente eleitos apenas um não é da sub-região do Médoc (o Haut-Brion, logazidado na sub-região de Graves, mas que por seu imenso prestígio não poderia ficar de fora). O motivo da limitação ao Médoc é simples. O Syndicat des Courtiers atuava principalmente no Médoc e não existia uma entidade congenere em outras sub-regiões bordalesas.
SAUTERNES - Embora menos comentada que a classificação do Médoc, os vinhos brancos doces da sub-região de Sauternes também foram classificados em 1855, em três níveis. Com fama e preço destacados o o Château d´Yquem recebeu a singular classificação de Premier Cru Supérieur, seguido de 10 1er Crus e 12 2ème Crus.
POMEROL - Esta é a menor dentre as mais importantes sub-regiões de Bordeaux. Seus vinhos, capitaneados pelo Pétrus, são caros e altamente reputados, um sucesso de critica e publico, sem nenhum tipo de classificação.
SAINT-ÉMILION - A cada 10 anos aproximadamente os vinhos de St-Émilion são reclassificados. Assim foram em 1955 (a 1a vez), 1969, 1986, 1996, 2006 e 2012, em três níveis - Premier Grand Cru Classé A (4 vinhos), Premier Grand Cru Classé B (14 vinhos) e Grand Cru Classé (64 vinhos). Atualmente o topo desta pirâmide é ocupado pelos Châteaux: Ausone, Cheval Blanc, Angélus e Pavie.
CRU BOURGEOIS - Criada em 1932, a denominação Cru Bourgeois visa distinguir os vinhos do Médoc que ficaram de fora em 1855. Atualmente esta é revista todos os anos, baseada em criterios de produção e degustação. Na de 2010 foram agraciados 260 vinhos.
GRAVES - esta sub-região só viria a ser classificada em 1953, quase 100 anos depois de 1855. A classificação de 1953 foi retificada em 1958 e atualizada em 1959. Existe apenas um nível: Grand Cru Classé, e inclui 13 tintos e 10 brancos.